Para o especialista britânico, em vez de denunciar os perigos da TV, videogame e internet, é melhor ajudar a turma a fazer escolhas conscientes
Rodrigo Ratier (rodrigo.ratier@abril.com.br), de Londres, Inglaterra (Fonte: Revista Nova Escola)
David Buckingham
Não é novidade, mas não deixa de ser chocante: nos países mais urbanizados (o que inclui o Brasil), crianças e jovens veem mais horas de TV do que de aulas. Se somarmos o tempo dedicado a outros meios de comunicação - internet, rádio, revistas e videogames -, o consumo de mídia na infância e adolescência só perde para o período de sono. Por isso, a importância de debater o assunto na escola é evidente. Para muitos professores, essa tarefa resume-se a alertar a turma sobre os perigos: a TV manipula, a publicidade estimula valores vazios, a internet está cheia de predadores sexuais. Pode não ser a melhor saída. "Essa atuação parte do princípio de que as crianças são vítimas passivas da influência dos meios de comunicação, o que não costuma ocorrer", afirma o britânico David Buckingham, diretor do Centro para o Estudo das Crianças, Juventude e Mídia na Universidade de Londres. Autor de 24 livros (apenas um deles publicado no Brasil) e com 30 anos de experiência na docência e na formação, o especialista defende que o trabalho deve estar focado no questionamento e na reflexão para preparar os jovens a fazer escolhas conscientes, tanto como consumidores (interpretando e julgando o que leem e assistem) quanto como produtores de mídia (usando as tecnologias para expressar seus pontos de vista). De seu escritório, em Londres, Buckingham concedeu a NOVA ESCOLA a seguinte entrevista.
Ao discutir mídia na sala de aula, muitos educadores entendem que sua principal missão é denunciar as mensagens nocivas dos meios de comunicação. Essa abordagem é eficaz?
DAVID BUCKINGHAM Esse tipo de atuação era comum na década de 1970, quando comecei a dar aulas de mídia. Muitos livros traziam a noção de que as crianças eram consumidores passivos e nós deveríamos dotá-las de habilidade crítica para libertá-las das ideias ruins apresentadas pelos meios de comunicação. Com a prática, fui percebendo que essa imagem do professor que carrega uma tocha para iluminar os estudantes, desfazendo a escuridão e a ignorância, tinha muito de fantasia.
Por quê?
BUCKINGHAM Primeiro porque, como muitas pesquisas mostraram nas últimas décadas, crianças e jovens não aceitam acriticamente qualquer coisa que veem na televisão ou internet. Não estou afirmando que eles sabem tudo: as capacidades de análise se desenvolvem com o tempo e variam conforme as experiências individuais. A segunda razão é que estudantes resistem quando há um adulto apontando o dedo e dizendo "você tem de fazer isso". Podem até jogar o jogo e dizer o que o professor quer ouvir: "Você está certo. E eu sei que a propaganda é ruim e a mídia está cheia de mentiras". O perigo, aí, é conseguir respostas cínicas em vez de críticas.
Como um professor que queira discutir mídia pode iniciar o trabalho?
BUCKINGHAM Eu começaria investigando o que os estudantes conhecem sobre mídia e como se relacionam com ela. Uma sugestão inicial é apresentar um produto midiático simples, fácil de manusear e familiar às crianças. Um anúncio de TV, por exemplo. Propagandas costumam ter um texto muito rico, que inclui música, linguagem verbal e imagens, são complexas em termos de edição e levantam questões sobre como o público está sendo tratado - se somos encorajados a nos identificar com os personagens ou não, por exemplo. Apresente o anúncio e faça perguntas para reflexão: o que você achou desse anúncio? Gostou? O que fez você ter essa opinião? Em seguida, isole as diferentes partes: mostre só o áudio, depois a imagem sem o som, congele algumas partes e assim por diante. Ouça os alunos sobre o significado do anúncio e leve-os a pensar em quem o criou, para qual público, de que forma ele representa o mundo e se aquilo que está na propaganda corresponde à realidade da turma. Essa abordagem começa com a discussão de impressões subjetivas e vai progressivamente caminhando para algo mais analítico, fazendo os alunos pensarem sobre as características da linguagem publicitária.
Quais as vantagens de privilegiar esse tipo de atividade?
BUCKINGHAM Você tem uma ideia clara de quais questões atacar. Fiz uma pesquisa com perguntas semelhantes a essas e descobri que crianças de 6 e 7 anos entendem o que é a propaganda, que ela está ali para vender coisas - embora não identifiquem que essa tentativa ocorra por meio do entretenimento - e que, na maioria das vezes, elas não são diretamente influenciadas pelos anúncios. Elas também têm noção de que aquilo foi concebido por um grupo de pessoas com um objetivo particular, mesmo que não saibam como um anúncio é feito, como funciona o mundo das agências de publicidade, que as pessoas pagam para colocar um anúncio na programação de TV etc. Esse conhecimento, o professor pode tornar disponível - desde que, é claro, possua algum tipo de formação na área, o que para mim é essencial.
O que significa, exatamente, ser crítico em relação à mídia?
BUCKINGHAM Esse é um desses termos difíceis porque, implicitamente, tem uma conotação negativa. Se você diz "não gosto da cor da sua camisa", posso responder: "Acho que você está sendo muito crítico". Não uso a palavra nessa acepção. Para mim, ser crítico é pensar de modo reflexivo. Não apenas pensar algo, mas refletir sobre meus pensamentos, avaliar que elementos me levam a ter as ideias e opiniões que defendo.
Quando se fala sobre o conteúdo da mídia, o debate público se fixa em dois assuntos principais. O primeiro deles é a violência. Há algum estudo que prove que a violência na mídia causa a violência na vida real?
BUCKINGHAM Há pesquisas, sobretudo nos Estados Unidos, que indicam essa relação. Mas também há muitas ressalvas a esses estudos. Metodologicamente, é problemático colocar a pessoa num lugar isolado, mostrar vídeos com imagens descontextualizadas de violência e então perguntar: "Você se sente violento?" As pessoas assistem a filmes de maneiras muito diferentes na vida real e num laboratório de Psicologia. Outro problema dessas pesquisas é que não se pode estabelecer, com clareza, uma relação causal: é a mídia que gera violência ou é uma disposição à violência que leva a pessoa a procurar conteúdos violentos?
Mas, de fato, parece haver muita agressividade na TV, no cinema e nos videogames.
BUCKINGHAM As mensagens da mídia são muito mais diversas e complicadas do que isso. Algumas dizem que a violência pode ser necessária, que certos tipos de violência são legítimos, mas outras defendem que ela é ruim, que pessoas ruins cometem violência e assim por diante. Algumas pretendem ser muito realistas, enquanto outras não são feitas para a gente levar a sério: há diferença entre a violência nos telejornais, num filme de Arnold Schwarzenegger ou num desenho de Tom e Jerry. Mesmo assim, boa parte do debate se assenta no pressuposto de que esses tipos de violência são a mesma coisa. É mais cômodo culpar a mídia pela violência do que combater causas como a desigualdade e a facilidade para adquirir uma arma.
Outro assunto que preocupa é o conteúdo sexual. Ele pode levar ao sexo precoce ou inseguro?
BUCKINGHAM Algumas das vozes mais elevadas dizem que a mídia glamouriza o sexo, que estimula os jovens a ser promíscuos, a ter práticas não seguras, a não valorizar os relacionamentos e, em relação aos meninos, a ser covardes e desrespeitosos com as mulheres. Há alguns anos, fiz uma pesquisa sobre o conteúdo sexual na mídia e, assim como no caso da violência, as mensagens são muito diferentes. Você encontra, sim, o sexo tratado como diversão e a ideia de mulheres - e, mais recentemente, homens - como objeto. Mas também há mensagens de que os relacionamentos são importantes e que são mais do que apenas sexo, bem como alertas para não fazer sexo jovem demais, usar preservativo e ter cuidado com as consequências. Sem contar que os jovens recebem outras mensagens, muitas vezes conflitantes com as dos meios de comunicação: observam o mundo, ouvem os pais, os amigos e, de vez em quando, até os professores. (risos) Precisamos entender o sentido que os jovens constroem com base nessas mensagens potencialmente contraditórias.
Qual é o maior desafio em relação ao uso das mídias e da tecnologia em sala de aula?
BUCKINGHAM Para mim, o grande problema é que os professores estão usando a tecnologia de modo muito instrumental, apenas como uma ferramenta. Há a crença de que a tecnologia na aula funciona como um pó mágico dos contos de fadas, automaticamente motivando os alunos a aprender apenas por ela já fazer parte da cultura de crianças e jovens. Isso não ocorre, entre outras coisas, porque há uma enorme distância entre o que eles fazem com a tecnologia fora da escola e o que são convidados a fazer dentro dela. Na vida cotidiana, o uso do computador é basicamente para a comunicação e o entretenimento. Mas, em aula, os professores apostam em softwares educacionais, que em geral não atraem a turma. Num jogo de computador para ensinar Matemática, as crianças e os jovens resolvem o mínimo do conteúdo e partem logo para a diversão - e muitas vezes reclamam que o jogo é menos interessante que um "de verdade".
Em tempos de internet, qual é o papel do professor?
BUCKINGHAM Ele é fundamental para ajudar as crianças a perceber que os conteúdos de qualquer mídia - seja nova, como a internet, seja velha, como a TV e os livros didáticos - não nos trazem o mundo, mas uma versão dele. É perguntar sempre: de quem veio essa informação? Quais são os interesses de quem a divulgou? De que forma ela representa o mundo? É confiável? Como podemos comparar essa informação com outras fontes? Também é preciso pensar em seu design porque muitas vezes é a linguagem visual que nos leva a confiar em determinado dado. Além disso, o docente tem o papel de municiar os estudantes com conhecimentos necessários até mesmo para poder julgar uma informação. Você pode me chamar de fora de moda, mas ainda acredito que existam fatos. (risos) O professor tem de socializá-los. Se não, corremos o risco de, por exemplo, acreditar nos sites que dizem que o Holocausto nunca ocorreu.
A tecnologia pode reduzir a autonomia do professor?
BUCKINGHAM Há esse risco. Por um lado, a tecnologia apresenta mais caminhos para aprender, permite uma maior personalização do conteúdo e ajuda na comunicação entre educadores, pais e alunos. É o caminho a ser buscado. Por outro lado, algumas experiências concretas têm apontado uma situação diferente.Na Grã-Bretanha, cada vez mais o governo não apenas coloca metas e padrões a serem alcançados mas também diz: "Você vai ensinar assim, num currículo centralizado, de acordo com determinado sistema. Nós proveremos os recursos didáticos e também o plano de aula". Nesse contexto, a tecnologia também pode ser usada como um instrumento de vigilância e de controle. Há potencialmente um grande perigo aí. Trabalhei por bastante tempo com a formação de professores e uma das coisas que está clara é que o bom ensino acontece quando os professores são donos daquilo que eles querem ensinar, quando dominam o conteúdo e sabem por que ele é importante, incentivando os alunos a aprender. E o ensino ruim acontece quando o professor está apenas seguindo uma rotina, uma série de procedimentos. Isso parece Educação, mas não é.
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